(Em Português, duas versões, em Francês e em Inglês)
Quem foi Charistian de Chergé?
Charles-Marie Christian de Chergé (Colmar, 18 de Janeiro de 1937 - Argélia, 21 de Maio de 1996) foi um monge cisterciense francês. Prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, na Argélia, foi raptado, juntamente com mais seis monges, na noite de 26 para 27 de Março de 1996, acreditando-se que foram mais tarde assassinados por fundamentalistas islâmicos.
Decidiu entrar para a Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, na Argélia, aonde chegou depois de realizar o noviciado na Abadia de Augebelle, em 1971. Estudou língua e cultura árabe com a Sociedade dos Missionários da África, também conhecida pelos Padres Brancos, no Instituto Pontifício de Estudos Árabes e Islâmicos, em Roma, de 1972 a 1974. Em 1984, a Abadia do Atlas passou a ser um priorado, e no mesmo ano, foi eleito seu prior.
De Chergé, durante a sua estadia na Abadia do Atlas, sempre encorajou o diálogo entre Cristãos e Muçulmanos. Tinha um profundo conhecimento e um grande respeito pelo Islão e as culturas árabes e islâmicas. Falava várias línguas, incluindo árabe, latim, grego e hebraico. De Chergé teve uma noite mística, durante o Ramadão, em 21 de Setembro de 1975, quando ocorreu numa capela do mosteiro uma oração comum entre um Cristão e um Muçulmano. Nunca mais deixou de aprofundar a sua crença na unidade pela diversidade das duas religiões durante a sua vida. Estudou e meditou as suras do Alcorão sobre "Jesus, filho de Maria", o "povo do Livro" e os Cristãos, comparando as palavras e os conceitos de ambas a religiões, como "misericórdia" e o "misericordioso".
O Grupo Ribât-al-Salam
De Chergé fundou, juntamente com o Padre Claude Rault, um "Padre Branco", que se tornaria bispo do Saara, o grupo Ribât-al-Salam, que discutia a tradição e a espiritualidade islâmicas, na Primavera de 1979. Em 1980, juntaram-se ao grupo, Muçulmanos Sufistas da fraternidade Alawya, fundada pelo sheikh Ahmad al-Alawi. O grupo tinha reuniões regulares no mosteiro, representando um lugar para diálogo e oração entre Cristãos e Muçulmanos, em respeito mútuo.
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Testamento de Dom Christian de Chergé
(Aberto no Domingo de Pentecostes de 1996)
Quando se tem de enfrentar um A-DEUS...
Se acontecer um dia - e poderia ser hoje - em que eu me torne uma vítima do terrorismo que agora parece pronto a engolir todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que minha comunidade, minha Igreja e minha família se lembrassem que minha vida foi DADA por Deus e a este país.
Peço-lhes que aceitem que o Único Mestre de toda vida não desconheceu esta partida brutal. Peço-lhes que rezem por mim: pois como poderia ser eu digno de tal oferta? Peço-lhes que consigam ligar esta morte às muitas outras mortes que são da mesma forma violentas, mas esquecidas pela indiferença e o anonimato.
Minha vida não tem mais valor do que qualquer outra. Nem também menos valor. Em qualquer caso, ela não tem a inocência da infância. Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, mesmo naquele mal que me mataria cegamente.
Gostaria que, quando vier o tempo, ter o momento de lucidez que me permitira pedir o perdão de Deus e de todos os seres humanos meus amigos, e ao mesmo tempo perdoar com todo meu coração aquele que me matará.
Não desejo tal morte. Parece-me importante declarar isto. Não vejo, de fato, como poderia me alegrar se este povo que amo for acusado indiscriminadamente de meu assassinato.
Responsabilizar um argelino, quem quer que seja, seria um preço muito alto para pagar para aquilo que talvez seja chamado "a graça do martírio", especialmente se ele diz que agiu em fidelidade com o que acredita que seja o Islã.
Estou consciente da pecha que será jogada a todos os argelinos indiscriminadamente. Também tenho consciência da caricatura do Islã que um certo islamismo encoraja. É fácil salvar a própria consciência identificando-se nesta via religiosa com as ideologias fundamentalistas de seus extremistas.
Para mim, a Argélia e o Islã são algo diferente: são um corpo e uma alma. Disse isto bastante frequentemente, creio eu, sabendo que recebi aqui mesmo o verdadeiro caminho do Evangelho, aprendido no joelho de minha mãe, minha primeira Igreja de fato, na própria Argélia, e já inspirada com respeito por crentes muçulmanos.
Minha morte, claramente, parecerá justificar aqueles que me julgam apressadamente ingênuo ou idealista: "Deixe-o dizer-nos agora o que ele pensa sobre isto!" Mas estas pessoas precisam compreender que minha mais ávida curiosidade será então satisfeita.
Pois isto será o que serei capaz de fazer, se Deus assim o quiser - imerso meu olhar naquele do Pai, contemplarei com ele seus filhos do Islã da mesma forma como ele os vê, todos radiantes com a glória do Cristo, o fruto de sua Paixão, e cheio com o Dom do Espírito, cuja alegria secreta será sempre de estabelecer a comunhão e de remodelar a semelhança divina, brincando com nossas diferenças.
Por esta vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, agradeço a Deus que parece tê-la desejado inteiramente para esta ALEGRIA em tudo e a despeito de tudo. Neste AGRADECIMENTO, que resume minha vida inteira a partir de agora, certamente incluo vocês, amigos de ontem e de hoje, e vocês, meus amigos deste lugar, junto com minha mãe e meu pai, minhas irmãs e irmãos e suas famílias -- cem vezes me foi dado a mais como prometido!
E também você, o amigo do meu momento final, que não terá consciência do que estiver fazendo. Sim, quero AGRADECER a você e este "A-DEUS" é para você em quem eu verei a face de Deus.
E possamos nós dois encontrarmo-nos, os felizes bons ladrões no Paraíso, se isto agradar a Deus, o Pai de ambos... Amen! In sha'Allah!
Algiers, 1 de dezembro de 1993 Tibhirine, 1 de janeiro de 1994
+Christian
Outra Tradução:
de Maria Clara Lucchetti B deingemer, em "Mística e Testemunho Em Koinonia" Paulus, 2018, SP p. 105-107:
QUANDO UM A-DEUS É CONSIDERADO
(Testamento espiritual de Christian de Chergé)
“Se me acontecesse um dia – e poderia ser hoje – de ser vítima do terrorismo que parece querer englobar doravante todos os estrangeiros vivendo na Argélia, eu gostaria que minha comunidade, minha Igreja, minha família, se lembrassem que minha vida foi entregue a Deus e a este país.
Que eles aceitem que o Mestre Único de toda vida não poderia ser indiferente a essa partida brutal. Que eles rezem por mim: Como seria eu digno de tal oferenda? Que eles saibam associar esta morte com tantas outras também violentas, deixadas na indiferença do anonimato.
Minha vida não vale mais do que outra vida. Ela tampouco tem menos valor. Em todo caso, ela não tem a inocência da infância. Eu vivi suficientemente para saber-me cúmplice do mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, e mesmo daquele que me atingiria cegamente.
Eu gostaria, chegando o momento, de ter esse lapso de lucidez, que me permitiria solicitar o perdão de Deus e o de meus irmãos em humanidade e, ao mesmo tempo, perdoar de todo o coração a quem me teria atingido.
Eu não poderia desejar esse tipo de morte; parece-me importante professá-lo. Não vejo, de fato, como poderia me alegrar com o fato de que esse povo que amo seja, indiscriminadamente, acusado de minha morte.
É muito caro pagar o que se chamaria, talvez, a ‘graça do martírio’, atribuindo-a a um argelino, seja ele quem for, sobretudo se ele diz agir em fidelidade ao que ele acredita seja o Islã.
Eu conheço o desprezo com o qual podemos cercar os argelinos tomados globalmente. Conheço também as caricaturas do Islã que um certo islamismo encoraja. É muito fácil ter a consciência tranquila, identificando esse caminho religioso com os integrismos de seus extremistas.
A Argélia e o Islã, para mim são outra coisa, são um corpo e uma alma. Eu proclamei bastante abertamente, acredito, o que disto recebi, aí encontrando tão frequentemente este fio condutor do Evangelho aprendido nos joelhos de minha mãe, minha primeira Igreja, precisamente na Argélia, e já, no respeito aos fiéis muçulmanos.
Minha morte, evidentemente, parecerá dar razão àqueles que rapidamente me trataram como ingênuo, ou idealista: “Que ele diga agora o que pensa disto! ”. Mas esses aí devem saber que será enfim liberada minha mais lancinante curiosidade.
Eis que eu poderei, se agradar a Deus, mergulhar meu olhar naquele do Pai para contemplar com Ele seus filhos do Islã tal como Ele os vê, iluminados da glória do Cristo, frutos de sua Paixão, investidos pelo dom do Espírito, cuja alegria secreta será sempre de estabelecer a comunhão e restabelecer a semelhança, brincando com as diferenças.
Essa vida perdida, totalmente minha, e totalmente sua, eu dou graças a Deus que parece tê-la querido inteira para essa alegria, contra e apesar de tudo.
Neste obrigado em que tudo é dito, agora, de minha vida, eu vos incluo seguramente, amigos de ontem e de hoje, e vós, ó amigos daqui, ao lado de minha mãe e de de meu pai, de minhas irmãs, de meus irmãos e dos seus, cêntuplo concedido como era prometido!
E a você também, o amigo do último minuto, que não terá sabido o que fazia. Sim, também para você também eu quero esse obrigado, e esse “a-deus” em cujo rosto eu contemplo o seu.
E que nos seja concedido reencontrar-nos, ladrões felizes, no Paraíso, se agradar de Deus, nosso Pai, meu e seu.
Amém! Insha Allah!”.
(Tradução de Maria Clara Lucchetti Bingemer “Mística e Testemunho em Koinonia” Paulus, 2018, p. 105ss SP)
Testament de Père Christian
ouvert le dimanche de Pentecôte, 26 mai 1996
Quand un A-DIEU s'envisage...
S'il m'arrivait un jour - et ça pourrait être aujourd'hui - d'être victime du terrorisme qui semble vouloir englober maintenant tous les étrangers vivant en Algérie, j'aimerais que ma communauté, mon Église, ma famille, se souviennent que ma vie était DONNÉE à Dieu et à ce pays.
Qu'ils acceptent que le Maître Unique de toute vie ne saurait être étranger à ce départ brutal. Qu'ils prient pour moi : comment serais-je trouvé digne d'une telle offrande ? Qu'ils sachent associer cette mort à tant d'autres aussi violentes
laissées dans l'indifférence de l'anonymat.
Ma vie n'a pas plus de prix qu'une autre. Elle n'en a pas moins non plus.
En tout cas, elle n'a pas l'innocence de l'enfance. J'ai suffisamment vécu pour me savoir complice du mal qui semble, hélas, prévaloir dans le monde, et même de celui-là qui me frapperait aveuglément.
J'aimerais, le moment venu, avoir ce laps de lucidité qui me permettrait de solliciter le pardon de Dieu et celui de mes frères en humanité, en même temps que de pardonner de tout coeur à qui m'aurait atteint.
Je ne saurais souhaiter une telle mort. Il me paraît important de le professer.
Je ne vois pas, en effet, comment je pourrais me réjouir que ce peuple que j'aime soit indistinctement accusé de mon meurtre.
C'est trop cher payé ce qu'on appellera, peut-être, la "grâce du martyre"
que de la devoir à un Algérien, quel qu'il soit, surtout s'il dit agir en fidélité à ce qu'il croit être l'Islam.
Je sais le mépris dont on a pu entourer les Algériens pris globalement. Je sais aussi les caricatures de l'Islam qu'encourage un certain islamisme. Il est trop facile de se donner bonne conscience en identifiant cette voie religieuse avec les intégrismes de ses extrémistes.
L'Algérie et l'Islam, pour moi, c'est autre chose, c'est un corps et une âme.
Je l'ai assez proclamé, je crois, au vu et au su de ce que j'en ai reçu, y retrouvant si souvent ce droit fil conducteur de l'Évangile appris aux genoux de ma mère, ma toute première Église, précisément en Algérie, et déjà, dans le respect des croyants musulmans.
Ma mort, évidemment, paraîtra donner raison à ceux qui m'ont rapidement traité de naïf, ou d'idéaliste : "qu'Il dise maintenant ce qu'Il en pense !".
Mais ceux-là doivent savoir que sera enfin libérée ma plus lancinante curiosité.
Voici que je pourrai, s'il plaît à Dieu, plonger mon regard dans celui du Père
pour contempler avec lui Ses enfants de l'Islam tels qu'Il les voit, tout illuminés de la gloire du Christ, fruits de Sa Passion, investis par le Don de l'Esprit
dont la joie secrète sera toujours d'établir la communion et de rétablir la ressemblance, en jouant avec les différences.
Cette vie perdue, totalement mienne, et totalement leur, je rends grâce à Dieu qui semble l'avoir voulue tout entière pour cette JOIE-là, envers et malgré tout.
Dans ce MERCI où tout est dit, désormais, de ma vie, je vous inclus bien sûr, amis d'hier et d'aujourd'hui, et vous, ô amis d'ici, aux côtés de ma mère et de mon père, de mes soeurs et de mes frères et des leurs, centuple accordé comme il était promis !
Et toi aussi, l'ami de la dernière minute, qui n'aura pas su ce que tu faisais.
Oui, pour toi aussi je le veux ce MERCI, et cet "A-DIEU" en-visagé de toi.
Et qu'il nous soit donné de nous retrouver, larrons heureux, en paradis, s'il plaît à Dieu, notre Père à tous deux.
AMEN ! INCH'ALLAH !
Alger, 1er décembre 1993
Tibhirine, 1er janvier 1994 Christian.+
Testament of Dom Christian de Chergé (opened on Pentecost Sunday, May 26, 1996) Facing a GOODBYE....
If it should happen one day - and it could be today - that I become a victim of the terrorism which now seems ready to engulf all the foreigners living in Algeria, I would like my community, my Church and my family to remember that my life was GIVEN to God and to this country.
I ask them to accept the fact that the One Master of all life was not a stranger to this brutal departure. I would ask them to pray for me: for how could I be found worthy of such an offering? I ask them to associate this death with so many other equally violent ones which are forgotten through indifference or anonymity.
My life has no more value than any other. Nor any less value. In any case, it has not the innocence of childhood. I have lived long enough to know that I am an accomplice in the evil which seems to prevail so terribly in the world,
even in the evil which might blindly strike me down.
I should like, when the time comes, to have a moment of spiritual clarity
which would allow me to beg forgiveness of God and of my fellow human beings, and at the same time forgive with all my heart the one who would strike me down.
I could not desire such a death. It seems to me important to state this. I do not see, in fact, how I could rejoice if the people I love were indiscriminately accused of my murder. It would be too high a price to pay for what will perhaps be called, the "grace of martyrdom" to owe it to an Algerian, whoever he might be, especially if he says he is acting in fidelity to what he believes to be Islam. I am aware of the scorn which can be heaped on the Algerians indiscriminately. I am also aware of the caricatures of Islam which a certain Islamism fosters. It is too easy to soothe one's conscience by identifying this religious way with the fundamentalist ideology of its extremists. For me, Algeria and Islam are something different: it is a body and a soul. I have proclaimed this often enough, I think, in the light of what I have received from it. I so often find there that true strand of the Gospel which I learned at my mother's knee, my very first Church, precisely in Algeria, and already inspired with respect for Muslim believers. Obviously, my death will appear to confirm those who hastily judged me naïve or idealistic: "Let him tell us now what he thinks of his ideals!" But these persons should know that finally my most avid curiosity will be set free. This is what I shall be able to do, God willing: immerse my gaze in that of the Father to contemplate with him His children of Islam just as He sees them, all shining with the glory of Christ, the fruit of His Passion, filled with the Gift of the Spirit whose secret joy will always be to establish communion and restore the likeness, playing with the differences. For this life lost, totally mine and totally theirs, I thank God, who seems to have willed it entirely for the sake of that JOY in everything and in spite of everything. In this THANK YOU, which is said for everything in my life from now on, I certainly include you, friends of yesterday and today, and you, my friends of this place, along with my mother and father, my sisters and brothers and their families, You are the hundredfold granted as was promised! And also you, my last-minute friend, who will not have known what you were doing: Yes, I want this THANK YOU and this GOODBYE to be a "GOD-BLESS" for you, too, because in God's face I see yours. May we meet again as happy thieves in Paradise, if it please God, the Father of us both.
AMEN ! INCHALLAH ! Algiers, 1st December 1993 Tibhirine, 1st January 1994 Christian +
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